segunda-feira, 4 de março de 2019

Parte 10 – Caça ou Caçadora?

Um Descontrole Passageiro


Saí da Masmorra só quando o dia clareou, seria uma segunda-feira de temperatura agradável, imaginei. Cheguei em casa próximo das seis e meia, fedida com todos os odores possíveis e cheia de dores. Praticamente adormeci em pé enquanto tentava abrir a porta, entrei cambaleante e deixei o armamento sob o meu travesseiro. O Pedro estava dormindo, deve ter me esperado durante boa parte da noite, presumi. Deitei de roupa e tudo e caí no sono. Ele falou comigo, eu acho, mas eu só queria morrer em paz e apaguei de imediato, pois minha noite não foi nada fácil. A minha transa com o travesti gigante e o outro cara peso-pesado varou a madrugada. Consegui concluir a negociação da arma com o Salomé somente depois das três da manhã. Paguei os três mil pela pistola e dois carregadores cheios. O travesti gigante me deu um terceiro carregador de presente, também cheio. Segurou em minha mão quando peguei o bagulho e disse:

— Isso é um brinde pra patricinha gostosinha voltar. Posso arrumar umas paradas “federal” com esse seu corpinho. Pensa nisso e me procura, você só tem a ganhar. 

Eu não sabia se ficava lisonjeada ou mais apavorada, a realidade do seu submundo era pesado demais para mim e, além disso, Salomé não era do tipo de aceitar uma recusa, então demonstrei um falso interesse e prometi voltar. Também aceitei seu convite e recomendação para jogar um pouco de poker até raiar o dia, pois a rua no momento poderia ser perigosa para mim devido a ter deixado uns caras zangados comigo durante o jogo de cartas. Eles ainda estariam circulando pelos arredores. 


Acordei meio-dia com o som das badaladas do sino da igreja, e ainda estava morrendo de sono, mas uma conversinha e sorrisinhos vindos do corredor ao lado de minha janela acendeu o meu sinal de alerta. Olhei pela fresta da veneziana e vi uma piriguete com os peitinhos eriçados por debaixo de uma blusinha fina de alcinha, praticamente ela se esfregava no peito do Pedro enquanto rebolava sua bunda com um shortinho que deixava as bochechas de fora. Ela morava no final do corredor com a mãe vadia. A mulher se deitava com o cara do açougue e o do mercadinho para ter comida grátis em casa, e também o senhorio em troca de desconto no aluguel.


Fiquei possessa e fiz besteira, perco o controle em certos momentos de irritação. Peguei a arma e abri a janela apontando para a testa da menina enquanto urrava:

— Sai fora seu projeto de piranha, se eu ver você se jogar em cima do meu homem mais uma vez, vou estourar essa sua cabeça de merda.

A garota tremeu na base e quase desabou, se afastou com as mãos erguidas e os olhos arregalados até chegar e entrar em seu muquifo. Olhei para o Pedro e sussurrei:

— Tá maluco cara, se te pegam enroscado com esse projeto de piriguete você vai em cana.

— O que você está falando? Eu cruzei com a garota na saída do mercadinho e ela só estava me contando sobre um filme que assistiu ontem.

— Ah tá! O cinquenta tons de cinza, né?

Ele entrou e me acalmou após pegar a arma da minha mão. Conversamos a respeito da minha noite. Inventei sobre a necessidade de esperar a boa vontade do chefe do pedaço, um travesti.

— Também joguei um pouco de cartas esperando o dia raiar para vir embora, pois o pedaço não é seguro de madrugada.

Achei melhor ocultar o lance de sexo brutal, depois falei par ir se preparando, partiríamos em busca dos traidores em três dias.


Na última hora da quinta-feira, partimos em um ônibus rumo ao sul; Itajaí e Camboriú seriam os locais prováveis para encontrarmos o canalha do Maciel. Todas as suas posses e bens materiais, além dos afetivos, estavam na cidade ou nos arredores, praticamente: sua mãe, a ex-companheira e o filho, por exemplo. Apesar de ter falado raramente com o concierge ao nível não profissional, ficou evidente que a garota ainda era especial para ele, o seu filho mais ainda. Era quase certo de ter retornado à região para ficar próximo a eles.


Ainda sobre o dia do golpe


Após furar o bloqueio policial e de ter sido alvejado por um tiro, Maciel considerou que parar e se entregar não seria a melhor alternativa, dirigiu loucamente o Audi a mais de 200 km por hora durante vários quilômetros. Era uma situação inédita em sua vida, apesar de ser um ladrão e golpista, todavia, nunca esteve em situações extremas com tiros e perseguição. Pecou pela inexperiência ao perder o controle do carro em uma curva, rodou na pista e terminou fora dela batendo em uma árvore. Não sofreu ferimentos graves graças ao Airbag. Saiu do veículo e olhou para Jessie desacordada e presa ao cinto de segurança no banco traseiro. O plano estabelecido pelo Rocha (o Nordestino) era acabar com a vida da garota de programa empurrando o Audi, com ela dentro, para o fundo de uma lagoa. O parceiro evitava deixar rastros capazes de levarem até eles. Maciel pensou: "E quem garante que não fará o mesmo comigo?"

Seus pensamentos foram interrompidos pelo som de sirenes ao longe. Abandonou o local e iniciou uma caminhada difícil pela mata. Contou com a sorte para chegar a uma região urbana e conseguir um táxi. Não poderia procurar ajuda hospitalar, entrou em contato com um médico seu conhecido. Contava com a discrição do doutor para cuidar do seu ferimento em troca de algum dinheiro.

Horas mais tarde, suas numerosas tentativas de contato via celular com o Rocha foram em vão, o comparsa era o mais experiente do trio, já havia destruído o celular pré-pago adquirido para usar somente na ocasião do golpe.

O Maciel estava temeroso, matariam sua parceira após arrancarem tudo dela, a seguir viriam atrás dele. Juntou suas coisas para sair de circulação, já havia dado a jogada de milhares de dólares como perdida, sonhou alto e se deixou enganar pelo comparsa recém-conhecido. E ainda se envolveu com uma elite abastada e poderosa que não hesitava em mandar matar quem atrapalhasse os seus negócios. Eles já estariam em sua captura, deduziu, precisava desaparecer de imediato para não ser o próximo a ser silenciado.

"Onde estaria o Rocha? Era um nome falso, óbvio, mas como soube do carro com o dinheiro? Quem era ele? Como soube a meu respeito?" Os pensamentos e perguntas enchiam a cabeça do concierge e não obtinha resposta para nenhuma delas.


***


Parte 10B – Caça ou Caçadora?


Após viajarmos a noite inteira, chegamos a Joinville. Falei para o Pedro sobre a necessidade de passarmos em um lugar antes de prosseguirmos para Camboriú. Pedimos para o motorista parar o ônibus quando saímos da zona urbana da cidade, caminharíamos dois quilômetros até uma casa onde morei. A parada não programada do busão também serviria para confundir possíveis perseguidores fazendo os caras perderem o nosso rastro.


Jessie mantinha essa estratégia como um hábito já há alguns anos, o Pedro só há alguns meses. Ela se sentia mais segura e confiante estando ao lado do seu novo parceiro, no entanto, se questionava: "Até onde ele seria capaz de comprometer-se comigo?".


Durante a caminhada:

— Seria bom se a gente conseguisse uma moto para locomoção… também seria ótimo pra fugir, se fosse preciso — disse o Pedro.

— Era para ser surpresa, mas vou contar agora mesmo. Tenho um carro enterrado aqui perto, estamos indo para lá.

— Enterrado?

— É modo de dizer, está escondido.


Chegamos na casa do meu antigo senhorio, eu morei em um quarto e cozinha nos fundos antes de ir para Campinas. Agradeci o homem e o retribuí por guardar o meu Santana.

Passamos um tempinho dando uma geral no carro, ele ficou parado vários meses. Mas enfim colocamos para rodar novamente o bichão fabricado há mais de vinte anos e fomos às compras. Precisava de um material específico para usar caso encontrasse os canalhas traidores.


Compramos os bagulhos em lojas diferentes, evitando assim, chamar a atenção indesejada devido ao conteúdo, o nomeei de “kit sequestro”: abraçadeiras de nylon para usar como algema, fita adesiva Cinza de PVC para tapar a boca e prender o corpo, uma boa faca de caça estupidamente afiada, um punhal automático e luvas descartáveis.

Lá pelas nove da noite fomos à casa noturna onde a Paola, ex-companheira do Maciel, trabalhava meses atrás. O cartaz com sua foto em destaque na entrada facilitou nossa investigação, ela ainda era uma das atrações principais em um show de stripper e erotismo.

Em razão do horário o movimento ainda era fraco, então montamos guarda do outro lado da rua contando com a possibilidade do concierge aparecer. O plano B seria seguir a Paola quando ela saísse, assim, chegaríamos em sua residência e ao seu filho. Segundo algumas conversas obtidas com o Maciel anteriormente, ele costumava pegar o garoto nos fins de semana para dar um passeio no shopping e o devolvia na casa da mãe horas depois.


A Paola chegou como passageira em um veículo e entrou no estacionamento em torno das 22h. Saiu logo depois em companhia de um gordinho grisalho. Os dois adentraram a casa noturna e não demonstraram serem íntimos.


As horas passaram e o concierge não apareceu. Era quase duas da manhã quando a stripper saiu, dessa vez, acompanhada de uma mulher. Entraram no estacionamento e saíram juntas em um Pálio vermelho. Nós as seguimos até pararem defronte uma residência onde a Paola desceu. A mulher seguiu em frente e sumiu de vista. Nós demos por encerrada a noite de campana e fomos para um hotel dormir um pouco.


No dia seguinte, sábado, retornamos à residência e vigiamos desde as nove da manhã. Durante o dia o menino apareceu duas vezes no quintal para olhar a rua, talvez na esperança de ver o pai, deduzi.

Era quase três da tarde quando o mesmo Pálio da noite anterior, com a mesma mulher ao volante, parou defronte à casa. A Paola saiu do interior da residência com o menino e uma senhora, beijou a ambos, saiu caminhando portão afora e retribuiu os beijos jogados pelo filho antes de entrar no veículo. Nem sinal do Maciel, decidi seguir o carro.


Jessie não imaginava que de caçadora poderia virar caça, em razão do Tenório (o Nordestino) também ter chegado em Itajaí no mesmo dia e estava bem próximo a ela. O ex-policial veio seguindo informações obtidas em Campinas sobre o concierge. Visitou prováveis lugares onde poderia estar, segundo suas apurações. Após horas de conversas e interrogatórios em Itajaí, o Tenório não obteve êxito, ninguém o havia visto nos últimos meses. No entanto, conseguiu o endereço do filho do Maciel e da sua ex. Ele faria uma visita à família.


Eram cerca de três da tarde quando o homem rude e frio chegou ao local, e no mesmo instante em que virou à esquerda entrando na rua onde morava a stripper, o Santana da Jessie havia deixado para trás a mesma rua ao virar à esquerda cinquenta metros adiante.

O Nordestino parou defronte à casa e observou o movimento durante cinco minutos antes de descer do carro e tocar a campainha. Foi o menino a primeira pessoa a aparecer, mas ao ver o homem no portão chamou pela avó. O Tenório perguntou para a senhora que surgiu por trás da criança, se poderia falar com o Maciel, tinha um trabalho para ele, mas o colega não atendia suas ligações.

— Ele não mora aqui.

— A senhora sabe como eu posso encontrá-lo? — ou perderá uma vaga ótima.

A resposta da mulher foi negativa, ela ficou incomodada como se não quisesse falar do pai do menino. O ex-policial insistiu pedindo para falar com a filha, mantendo o celular na mão o tempo todo  e registrando imagens da avó e neto sem ambos perceberem.

— Ela não está no momento — falou a mulher desconfiada, incomodada e empurrando o menino para dentro. — Desculpe, não sabemos dele.

O Tenório agradeceu a atenção e foi embora. Já sabia onde a Paola trabalhava durante a noite, iria até a casa noturna mais tarde e teria uma conversa com a ex sobre onde estava o pai do seu filho. Com sua arte de persuadir mediante ameaças e violência, o profissional tinha certeza da colaboração da stripper caso ela soubesse. "E será melhor para ela que saiba", pensou com maldade.


Eu e o Pedro seguimos o carro com as duas mulheres até o Balneário Camboriú, elas entraram em um dos melhores motéis da região.

— Será que as duas são namoradas? — quis saber o rapaz.

— Não, elas vão trabalhar; só não sei se em quartos separados ou no mesmo, tipo duas com um cara ou um swing — isso vai demorar umas duas horas e eu estou morrendo de vontade de fazer xixi, melhor irmos embora — concluiu Jessie.

— E eu estou com fome —disse o Pedro.

— De noite a gente volta na casa noturna, precisamos grudar em mãe e filho dia e noite, pois cedo ou tarde o escroto virá até eles — disse ela.


21h40, os dois jovens estavam a meia hora montando campana do lado de fora da casa de shows.

— Me beija! — ela ordenou.

Pedro ficou confuso, mas não perdeu tempo quando a moça tomou a iniciativa colocando sua boca na dele. Ela acariciou seus cabelos, mas com a intenção de manter seu campo de visão na surpresa avistada… O concierge. Seu ex-parceiro apareceu até antes do que ela esperava, o reconheceu ao surgir caminhando pela calçada. "É o cara com certeza", pensou. Apesar da mudança na aparência: escureceu e fez permanente nos cabelos, incluiu bigode e cavanhaque no seu novo visual, mas o tipo físico e as passadas eram as mesmas. Quando passou pelo casal de supostos namorados, Jessie cessou o beijo e murmurou:

— Fica ligado, é ele — e fez um sinal com a cabeça em direção ao cara caminhando à frente.

O casal foi atrás e deu um bote no sujeito, Pedro colou de um lado e ela do outro. O Maciel tentou fugir, mas foi duramente detido pelos dois, Pedro mostrou a pistola empunhada sob a camisa, do outro lado a jovem o abraçou pela cintura com um braço e fez carinho na região do seu ventre com o outro para averiguar se ele estava armado.

— Perdeu baby, não faz bobagem e vem com a gente! — ordenou Jessie.


Continua…


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